Este sermão foi transcrito do documento original disponibilizado digitalmente no sítio do Arquivo da Torre do Tombo, sob o código PT/TT/RMC/B-E/001/6354. Inclui despacho da Mesa para imprimir e voltar a conferir de 19 de Julho de 1784, mas não se sabe ao certo qual é a data exata do Sermão, mas somente que foi durante o século XVIII e que foi pregado na Catedral da Bahia. Segue a transcrição:
Sermão do primeiro dia de quarenta horas, pregado na Sé da Bahia pelo Padre Mestre Doutor Frei Bento da Trindade, Opositor às Cadeiras de Teologia da Universidade de Coimbra, Qualificador do Santo Ofício, e Examinador das três Ordens Militares.
Non in comissationibus et ebrietatibus; non in cubilibus et impudicitiis; sed induimini Dominum Iesum Christum. – Não vos entregueis aos exessos de comida, e bebidas; Não aos da impudicícia, e da impureza; mas vesti-vos da graça de Jesus Cristo. I Paul. Ad. Rom. 13, 12.

Antiga Sé da Bahia
Esta era a breve exortação, que São Paulo dirigia aos primeiros fiéis habitadores de Roma. Querendo apartá-los dos excessos, que um desgraçado resto de seu abjurado gentilismo deixava entrever ainda nos seus costumes, o Apóstolo lhes lembrava as novas obrigações da sua vocação ao Evangelho, a sublime santidade do Cristianismo que haviam abraçado, e a grande incompatibilidade de suas desordens com a sua profissão. Persuadiam-lhes vivamente a frugalidade nas suas mesas, a isenção de todas as ações de impureza, e de todos os espetáculos, e divertimentos semelhantes aos dos Gentios. Renunciai, dizia ele, todas as obras das trevas[1], e vesti armas de Luz. A noite de vossas superstições, e impiedades é passada[2] na renúncia solene, que fizestes no Batismo, do mundo, e de suas pompas. Um dia mais luminoso, e mais sereno se seguiu às vossas antigas trevas. Outras festas mais augustas, outros prazeres mais doces, outra alegria mais sólida, outra mesa mais deliciosa, mais Santa, mais Divina, deve interessar vossos cuidados. Não são já os divertimentos profanos, e gentílicos, que devem recrear o vosso espírito, não os indignos excessos de comidas, e bebidas, não as ações vergonhosas da impudicícia, e da Luxúria; mas os inocentes prazeres da virtude, as doçuras verdadeiras da graça de Jesus Cristo, e as delícias inefáveis de sua sagrada Mesa. Non in comissationibus et ebrietatibus; non in cubilibus et impudicitiis; sed induimini Dominum Iesum Christum.
Mas se uns erros, ou abusos escapados talvez mais à ignorância do que à malícia daqueles primeiros Fiéis, excitavam tão vivamente o zelo do Santo Apóstolo; que seria se ele ivesse observado a dissolução dos nossos divertimentos? Qual seria o seu horror, e o seu espanto, se ele tivesse visto nesta terra os excessos praticados nestes dias? Que diria, se tivesse visto o Cristianismo expirante, e quase abolido entre nós? A modéstia e a decência proscritas, e o sexo antes depositário do pudor, rompendo todos os diques da retenção, e do recato? Que diria, se ele tivesse visto os sexos confundidos, encobrindo em seus rostos a imagem, e semelhança de Deus, para tomar as Liberdades da mais impudente idolatria? O demônio atraindo a seu partido quase toda uma Cidade, que se atribui a qualidade de Cristã? Usurpando ao Altíssimo as adorações devidas; e opondo à Santa quarentena do jejum, e penitência, que vai a principiar, outra quarentena ímpia, que acaba[3], de abominações, e de escânda-los? Que diria, (?)sena-solenidade deste Tríduo, que nos devia dispor para entrarmos dignamente nos dias de salvação, ele visse os nossos Templos desertos, as santas solenidades sem concurso, Jesus Cristo abandonado, e quase solitário no Divino Sacramento, sem que a sua presença contenha tantas desordens, ou acabo de atrair tantos desgraçados desertores de sua Mesa, e do seu Templo? Que diria… mas eu me encho de horror, e não me atrevo mais a introduzir a S. Paulo no meio de uma dissolução tão excessiva. Que diria pois, eu não digo já o Santo Apóstolo, mas um gentio, um infiel, um estrangeiro à vista disto? Que? São pois estes, diria ele, os divertimentos de um Povo, que se preza de Cristão? E que diz ser a nação especializada de Deus, Povo de escolha, e de benção, gente Santa? Genus electum, populus in acquisitionem, gens santa[4]? É este aquele Povo, que nos chama infiéis? Que Insulta os nossos ritos, costumes, e nos exagera a sua probidade, a sua ética, e as suas virtudes em preferência aos mais Povos? É este, enfim, o Poo que adora a um Deus crucificado, que crê a sua presença no Sacramento do Altar, e que diz que o recebe nas espécies de pão? E que? Deixa ele ao Deus a quem adora para se recrear com o demônio, e com o mundo, que renunciou em seu Batismo? Deixa uma Mesa, que confessa ser Divina, e em que recebe o seu Deus, por uma mesa profana? Que contradição tão monstruosa! Que incompatibilidade tã horrível de máximas, costumes! Não, o Sol não ilumina algum Povo mais incoerente e dissoluto. Os climas, e os Países mais agrestes, as Seitas mais bárbares, os Povos mais dissolutos, não excedem a dissolução destes Cristãos; os bosques, e as brenhas mais incultas da Ásia, e da África não produzirão já mais habitadores… Suspendamos, Senhores, estas tristes reflexões, vós vos ofendereis talvez; mas permiti pela glória do Senhor, que vos faça ver neste discurso, todo o Terror de uma desordem tão escandalosa, ultrajante à nossa profissão, e Cristandade. Para isto eu não tenho mais que repetir-nos as palavras do Apóstolo, elas bastaram para converter a meu Padre Santo Agostinho; faça o Céu que elas produzam em algum de nós o mesmo efeito. – Não vos entregueis nestes dias aos criminais excessos da gula, e da impureza – Non in comissationibus et impudicitiis – Mas buscai a graça de Jesus Cristo, que hoje se nos oferece na mesa do Sacramento – sed induimini Dominum Iesum Christum – Eis aqui pois o meu assunto: A preferência infinita e incomparável das delícias da graça de JESUS Cristo no Divino Sacramento, sobre os falsos prazeres que o mundo nos oferece nestes dias. – Exurge in adjutorium meum Domine Deus salutis mea. (?)princípio.
Inimigo cruel das nossas almas, cujo nome odioso não merece proferir-se, soberbo, (?)pretendido rival da glória do Onipotente, tu tens triunfado enfim nestes dias desgraçados. Eis aí uma bem grande colheita, que nós tivemos a desgraça de por nas tuas mãos. Os quarenta dias passados de desordem te compensam largamente dos golpes que se te preparavam nos quarenta dias futuros da nossa reconciliação e penitência. Demos-te enfim tantos dias para exercitares sobre nós a tua escravidão, quantos a Igreja nos pede para nos pede para nos poder livrar dela. Tiveste enfim teu tempo. Recebemos de ti as Leis que ti nos quiseste impor. Entregamo-nos à tua descrição. Tens sido enfim bem obedecido, bem servido. Legislaste, venceste, triunfaste.
A Bahia (por que enfim, ó meu Deus, para que dissimular uma verdade, injuriosa sim e humilhante; mas que tem sido tão escandalosa, e tão notória?), a Bahia se deixou abandonar aos maiores excessos. A prostituída impudente de que fala o Evangelista Profeta no seu Apocalipse[5] fingindo abrir seu rosto, se mostrou mais descarada, e fez beber o veneno da taça dourada, que traz nas suas mãos, os desgraçados cúmplices da sua impudicícia: A desenvolta Babilônia parece que quis encher a medida de seus crimes: O Israel do Senhor adotou todas as abominações da Samaria, e dos desses estrangeiros Toda a Carne parece ter corrompido seus caminhos[6]. A abominação anunciada no Evangelho[7] quase se quis elevar no Lugar Santo. Saiu da Filha de Sião todo o seu Lustre[8]. Viram seus inimigos a sua ignomínia, e o seu opróbrio, e fizeram zombaria de suas solenidades[9]. Falemos sem figura Senhores, e tiremos de uma vez a máscara à desenvoltura , e à impiedade. Abandonou-de o Povo aos maiores excessos da Liberdade, e da desordem. Rompeu a Libertinagem quase todos os obstáculos da modéstia e da virtude. Desprezaram-se não só as Leis do Evangelho, mas as da probidade, e da decência. Tudo tem sido tolerado nests dias. Chegaram as Cerimônias da Igreja a dar assunto a espetáculos ridículos. Viram-se os Templos desertos nos dias de suas festas enquanto a extensão de seus átrios apenas podia abranger a multidão de concorrentes de um e outro sexo. Viu-se (Ó meu Deus, e poderei eu dizê-lo sem cobrir de confusão estas sagradas paredes?), viu passar com pompa, e solenidade o Divino Sacramento[10] entre as extensas alas de expectadores mascarados, e de mulheres manifestas em traje de outro sexo sem disfarçarem o próprio.
Inaudito excesso de irreligião, e impiedade, tu não eras ainda conhecido entre nós. Os séculos precedentes ignoraram totalmente este novo modo de insultar a presença real de Jesus Cristo no Divino Sacramento. No seio da Cristandade não se havia observado um semelhante espetáculo. Nossos Pais não tinham visto o Corpo de Jesus risto rodeado de adoradores com uma máscara ridícula no rosto. Esta nova impiedade estava só reservada para comparecer em nossos dias. E vós, adorado Redentor, vós não haveis talvez sofrido ainda nesse Divino Sacramento um ultraje semelhante. Na vossa Pão tínheis tolerado, é verdade, aos algozes, que vos cobriam o rosto[11], para vos oferecer adorações irrisórias; mas hoje por uma contradição não menos ímpia os mesmos que vos adoram com outra igual reverência cobrem ridiculamente o seu rosto, e tem o sacrílego arrojo de comparecer desta sorte, não só diante de vós, mas ainda junto a vós. Céus, como pudestes sofrer um semelhante atentado? Astro brilhante do dia, como não escondeste então as tuas Luzes!

Mas não Senhores, não espereis aqui de mim, que eu levante a minha voz para clamar altamente contra este horrível desacato. Eu me não sinto com forças. A minha vos desfaleceu. O sangue se me gela nas veias, e euonfesso Senhores, que me envergonho, e contundo de vos recordar aqui verdades tão odiosas. Ocultemos antes esta nossa ignomínia em um eterno Silêncio. Não saibam os infiéis estas tristes anedotas, e este humilhante opróbrio da nossa Religião e Cristandade. Mas de que vale ocultar uma verdade tão notória? E por mais que quardemos silêncio nestes criminais abusos, não grita o escândalo mais do que todas as nossas invectivas? Que? Podemos nós dissimular a nossa dor vendo ao Divino Sacramento ultrajado deste modo? Podemos ver sem horror os nossos Templos desertos na hora dos Sacrifícios, enquanto as ruas, e praças se acham tão cheias de ociosos de um, e de outro sexo? Podemos ver tanta repugnância, e dispersão nesta solenidade augusta, e tanto gosto e concurso na ociosidade, nos divertimentos, nas danças? E que danças, ó Deus meu! Podia o inferno exalar tanta infecção entre nós? O demônio com todos os seus artifícios poderia descobrir um meio mais eficaz para inspirar todas as abominações da impudicícia, e para banir de entre nós todo o resto da decência, e do pudor? Poderia jamais esperar-se que chegasse a este ponto a Liberdade do sexo tímido, covarde, piedoso? Ao mesmo tempo este é o sexo mesmo, que (?)afeta nesta terra envergonhar-se de ir de dia aos nossos Templos, e de comparecer nas Santas solenidades da Igreja. E que Senhores! Tanto pejo para buscarem a Deus no seu Templo, e tanta dissolução e Liberdade em se manifestarem em público em semelhantes espetáculos!
Da Madalena, diz engenhosamente meu Padre Santo Agostinho, que soube buscar a salvação em Jesus Cristo com uma Santa impudência[12] – quaesivit pia impudentia sanitatem – Por mais que a sua qualidade e o seu sexo parecesse condenar a piedosa Liberdade de sair só de sua Cara aos olhos de toda a Jerusalém para ir buscar ao Salvador na Casa do Fariseu; por mais que a ocasião de um convite parecesse intempestiva, e os assistentes malignos nos seus juízos; esta Santa pecadora não repara em coisa alguma, sufoca o seu pejo natural, e se eleva sobre os sentimentos vulgares, para procurar santamente resoluta a sua salvação e o seu remédio – quasivit pia impudentia sanitatem. – Hoje porém as pessoas do seu sexo, nesta terra, por uma contradição bárbara, ridícula, extravagante sufocam o justo pejo que lhes deviam inspirar as indecentes liberdades, e se envergonham impiamente de ir de dia aos nossos Templos. Mais diligentes, Deus meu, para comparece nos anti-Cristãos divertimentos, que nas santas solenidades da vossa Igreja. Mais sensíveis aos insípidos prazeres dos sentidos do que aos doces atrativos da vossaamável presença. Mais interessadas enfim nos excessos da gula e intemperança de suas mesas do que nas delícias inefáveis da mesa da Eucaristia.
Ah Senhor, quando vós instituístes este Divino Sacramento, o compêndio de todas as maravilhas do vosso amor, esperáveis vós experimentar tanto fastio, repugnância nos vossos Filhos para vos assistirem e receberem neste sagrado banquete? Esperáveis achar-vos abandonado no vosso Trono desconhecido, e rejeitado por aqueles mesmos por cujo amor obrastes tantos excessos? Esperáveis ver-nos entregues nestes dias aos excessos da gula, e da intemperança, enquanto vós nos ofereceis nesse adorável Sacramento a vossa Carne, o vosso Sangue, para nos nutrir docemente? E são, contudo, estes os vossos Filhos, o vosso Povo fiel, a vossa amada Conquista! – Haeccine redis Domine popule stulte et insipiens[13] – É pois assim que tu correspondes ao teu Deus, povo ingrato e insensato? Assim lhe pagas a fineza de te buscar, de te assistir, de te nutrir, de te amar com tanto excesso no Divino Sacramento? Ah! Um Deus exposto, e manifesto às vossas adorações não vos merece mais amor, mais atenção? Podestes dar ao mundo os quarenta dias passados, e não podeis dar ao Senhor quarenta horas de culto neste tríduo. A sua real presença não vale acaso o sacrifício de três dias de recolhimento, e de abstinência? Não tem a sua presença, e a sua graça alguns atrativos para vós? O seu sagrado banquete não excitará em vos mais do que náusea, e fastio?
Ide pois, Cristãos ingratos, esconder longe da presença do Senhor a vossa ingratidão. Ide preencher a medida dos vossos crimes. Ide acrescentar mais estes três dias aos quarenta passados da vossa dissolução. Ide alegrar-vos tristemente nesses recreios pagãos; mas levai convosco aquela terrível sentença do Senhor – ai de vós os que vos alegrais agora, tristemente à despesas da virtude; porque chorareis deveras algum dia – vae vobis, qui ridetis nunc: quia lugebitis[14] – Vinde vós na fala destes ingratos, ó verdadeiros Cristãos, vinde gozar aqui da presença do Senhor, e saciar-vos das torrentes de delícias da sua Divina mesa. Vinde desagravar a Jesus Cristo dos insultos que recebe dos ímpios neste tríduo, e dar-lhe um claro testemunho da vossa Fé, e do vosso amor. Vós aqui achareis no sagrado banquete outros prazeres mais sólidos, outro alimento mais doce, outras delícias mais puras, mais confortantes, do que o mundo pode dar-vos. Que vantagem para vós ser convidados à mesa do Bom Senhor com preferência a tantos outros! Que felicidade, gozar da sua presença, entrar em sua amizade, e recebê-lo nos vossos corações.
Ah quanto vós sois venturosos, dizia antigamente Moisés ao povo de Israel, quanto vós sois venturosos na proteção do Senhor que vos assiste no Tabernáculo? Quanto sois privilegiados entre todas as Nações do Universo nos benefícios e prodígios com que vos especializa e favorece! Considerai todos os Povos da terra, e vede se há algum tão favorecido de Deus, que tenha umas cerimônias tão augustas umas festas tão Divinas, e umas Leis tão adoráveis, e tão Santas, como as que eu hoje vos proponho – quae est alia gens sic ínclita, quae habeat ceremonias iustaque iudicia, et Legem, quam ego propono hodie?[15] Como querendo dizer-lhes: Vós acabais de sair dos ferros do Faraó e de seu jugo duríssimo. O Senhor vos libertou com mil prodígios na força vitoriosa de seu braço. Ele iluminou o vosso especializado continente enquanto sepultou ao resto do Egito em escuríssimas trevas. Tem-vos conduzido sempre como pela mão no deserto: precede a vossa marcha na coluna viajante. Nutre-vos de um pão celestial e de uma água milagrosa: assiste-vos no Tabernáculo; protege as vossas Tribos no asilo da Arca Santa: está no meio de vês, e se faz singularmente o vosso Condutor, a vossa proteção, o vosso Deus. Comparai o vosso estado presente com o que a pouco deixastes, e reconhecei a preferência destes dias luminosos sobre os tempos obscuros da vossa escravidão. Comparai os ritos abomináveis dos Egípcios com as nossas Cerimônias; as suas festas impuras com as nossas Solenidades; as suas viandas insípidas com as delícias do maná; as suas horríveis divindades como Deus dos nossos Pais, e reconhecendo a preferência infinita desta felicidade sobre aquela desgraça, vede se há um toda a terra algum povo tão feliz, alguma religião tão Santa, algumas Leus, ou Cerimônias tão augustas como as que hoje contemplai – quae est alia gens sic ínclita, ut habeat ceremonias.
Augusto Legislador, Profeta Santo, extendei as vossas vistas até nós. Entrai hoje nos nossos Templos, observai os nossos mistérios, e reconhecei a incomparável preferência dos Cristãos sobre o Povo de Israel nas augustas cerimônias de nossa solenidade, nas Leis, e nos benefícios de Deus. Aparecei hoje aqui, e vós vereis ao Senhor executar aqui mais prodígios de amor no breve espaço de quarenta horas do que praticou antigamente nos quarenta dias que vos demorou sobre o monte; nos quarenta anos que conduziu a Israel pelo deserto, e mesmo nos quarenta séculos, que precederam a instituição daquele adorável Sacramento. Vos não achareis aqui já o Tabernáculo portátil, a Arca da Aliança, a nuvem caliginosa, o maná figurativo; mas achareis com infinita vantagem o espírito de significação dessas antigas figuras. Não achareis ao Deus majestoso de Sinai que faz-se conhecer sua presença ao povo aterrado com os raios e trovões, que fazem tremer o monte, ou com o fogo subterrâneo em que abrasa aos ímpios. Mas achareis a um Deus todo amor, todo doçura, que se faz pessoalmente presente às nossas adorações, que se mostra sem terror, que se familiariza sem reserva, e se dá sem distinção aos que o querem receber: um Deus, que nos nutre de sua Carne e de seu sangue, que entra nos nossos Corações, que se une intimamente a nós mesmos, que nos ama como Pai, que nos honra com a qualidade de seus Filhos, que nos comunica os seus dons, e a sua mesma Divindade. Um Deus que vem pessoalmente livrar-nos da nossa escravidão, que ilumina ele mesmo as nossas trevas, e acha as suas delícias em assistir entre nós. Ah! Que prodígio de amor e de Bondade! Verdadeiramente que não há alguma nação tão feliz, e gloriosa, que tenha suas divindades tão unidas a si como se une a nós o nosso Deus. – Non est alia natio tam grandis, quae habeat deos appropinquantes sibi, sicut Deus noster adest[16].
Não invejeis pois, Cristãos a felicidade do antigo Povo a quem o Senhor nutriu de Maná no deserto, nem a dos antigos Patriarcas, e Profetas a quem o Senhor comunicou mais abundantemente as suas luzes. Não invejeis o privilégio de Jacó, que o teve em seus braços[17], o de Moisés que o comunicou sobre o Monte[18]. Vós aqui gozareis outra familiaridade, outra doçura, outra abundância de graças incomparavelmente maiores. Não só comunicareis ao Senhor como Moisés, não só o tocareis como Jacó; mas o recebereis dentro de vós, e vos unireis intimamente a ele. – Ecce tibi conceditur non solum videre, et tangere, sed intra te sumere[19].

Atual Catedral Basílica de Salvador. Créditos: Osman Said, Flickr.
Buscai pois ao Senhor em quanto o podeis achar. Ah! Nestes dias desgraçados em que todos o abandonam, e em que o demônio lhe disputa tantas almas: quando os ímpios multiplicam contra ele os seus ultrajes então é que lhe devemos especiais homenagens, e serviços. Demos pois ao Senhor um testemunho manifesto de nossa fidelidade, isto é o mesmo JESUS Cristo que parece convidar-nos como em outro tempo a seus Discípulos; eis-me aqui reduzido só a vossa companhia, e assistência, dizia ele, esta é toda a porção de assistentes que me resta de um povo tão numeroso. Todos os mais me abandonaram, e se apartaram de mim, por ventura quereis vós também seguir o seu mau exemplo, e deixar-me como eles? – Nunquid et vos vultis abire?[20]
Povo Cristão, eis aqui pois os tristes dias em que o vosso Bom Senhor se acha quase só e abandonado de toda esta Cidade: ele se acha presente naquele adorável Sacramento só com uma pequena porção de assistentes; mas sereis vós tão desgraçados, que o queirais também deixar, e tomar o partido do mundo, e do demônio contra ele? – nunquid et vos vultis abire? – Oh! E que feliz ocasião de vos distinguir diante do vosso Deus, e de merecer a sua graça, e as suas recompensas! Que merecimento, e que glória para nós o consagrar estes três dias no desagravar por nossa fidelidade, e assistência da perfídia ingratidão dos maus Cristãos? Com que doce complacência nos veria Jesus Cristo entregues à Oração, e à Lição de um livro devoto nestas noites desgraçadas que tantos empregam em o ofender? Que espetáculo tão agrdável aos olhos do Senhor se algum dos que me ouvem se quisesse resolver a confessar-se e comungar, e prevenir o Santo tempo da quaresma com uma antecipada penitência!
Meu Deus do meu Coração, e que pouco é o que vós hoje me pedis em comparação do muito que vos devo? Que curto espaço é o de três dias de exercícios Cristãos em comparação de uma eternidade de glória que vós me prometeis se os aproveito bem, ou uma eternidade de tormentos a que me vou arriscar se os perder? Que vem a ser quarenta horasde recolhimento, e de oração por mais de quarenta anos que tenho passado em ofender-vos? Ah Senhor! Que [x] possa eu eternizar este breve espaço de tempo para o empregar todo em vos assistir, em vos servir, em vos amar. Eu vou pois, Senhor aproveitar esta comutação tão vantajosa; eu me sacrifico todo ao vosso serviço e ao vosso amor nestes dias, para que vós me compenseis com abundância de graça, com eternidade de glória.
Assim seja.
[3] Tinham acabado no dia antecedente, quarenta dias de máscaras.
[8] Tenum. Thren. 1. 6. (?)
[10] Na procissão do Santíssimo Sacramento da Vitória
[12] I. Aug. Lib. 50. Nom. 23.
[19] S. Ioan. Chris. Hom. Ad populum.
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